Da indenização por abandono afetivo na mais recente jurisprudência brasileira.
A responsabilidade civil no
Direito de Família projeta-se para além das relações de casamento ou de união
estável, sendo possível a sua incidência na parentalidade ou filiação, ou seja,
nas relações entre pais e filhos. Uma das situações em que isso ocorre diz
respeito à responsabilidade civil por abandono afetivo, também
denominado abandono paterno-filial ou teoria do
desamor.
Trata-se de aplicação do
princípio da solidariedade social ou familiar, previsto no art. 3º, inc. I, da Constituição Federal, de forma imediata a uma relação privada, ou seja, em eficácia
horizontal.Como explica Rodrigo da Cunha Pereira, precursor da tese que
admite tal indenização, "o exercício da paternidade e da maternidade – e,
por conseguinte, do estado de filiação – é um bem indisponível para o Direito
de Família, cuja ausência propositada tem repercussões e consequências
psíquicas sérias, diante das quais a ordem legal/constitucional deve amparo,
inclusive, com imposição de sanções, sob pena de termos um Direito acéfalo e
inexigível" (Responsabilidade civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade
civil no direito de família. Coord. Rolf Madaleno e Eduardo Barbosa.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 401).
O jurista também fundamenta a
eventual reparabilidade pelos danos decorrentes do abandono na dignidade da
pessoa humana, eis que "o Direito de Família somente estará em consonância
com a dignidade da pessoa humana se determinadas relações familiares, como o
vínculo entre pais e filhos, não forem permeados de cuidado e de
responsabilidade, independentemente da relação entre os pais, se forem casados,
se o filho nascer de uma relação extraconjugal, ou mesmo se não houver
Conjugalidade entre os pais, se ele foi planejado ou não. (...) Em outras
palavras, afronta o princípio da dignidade humana o pai ou a mãe que abandona
seu filho, isto é, deixa voluntariamente de conviver com ele" (PEREIRA,
Rodrigo da Cunha. Responsabilidade Civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade
Civil no Direito de Família, ob. cit., p. 406). Para ele, nesse seu
texto mais recente, além da presença de danos morais, pode-se cogitar uma
indenização suplementar, pela presença da perda da chance de convivência com o
pai.
O doutrinador e presidente nacional do IBDFAM atuou
na primeira ação judicial em que se reconheceu a indenização extrapatrimonial
por abandono filial. Na ocasião, o então Tribunal de Alçada de Minas Gerais
condenou um pai a pagar indenização de duzentos salários mínimos a título de
danos morais ao filho, por não ter com ele convivido (Apelação Cível n. 408.550-5
da Comarca de Belo Horizonte. Sétima Câmara Cível. Presidiu o julgamento o Juiz
José Affonso da Costa Côrtes e dele participaram os Juízes Unias Silva,
relator, D. Viçoso Rodrigues, revisor, e José Flávio Almeida, vogal).
Filiando-se ao julgado mineiro
e à possibilidade de indenização em casos semelhantes também está a Professora
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, uma das maiores juristas deste País na
atualidade, expoente não só do Direito de Família, mas também da
Responsabilidade Civil. De acordo com as suas lições, "a responsabilidade
dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos
filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção da própria
liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da ideia antiga e
maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a compreensão baseada no
conhecimento racional da natureza dos integrantes de uma família quer dizer que
não há mais fundamento na prática da coisificação familiar (...).
Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos
filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim,
que uma vida familiar na qual os laços afetivos são atados por sentimentos
positivos, de alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou ódio recíprocos,
é uma vida coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental e a
orientação filial, como especialmente a liberdade paterno-filial"
(HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da
responsabilidade afetiva nas relações entre pais e filhos: além da
obrigação legal de caráter material. Disponível em: www.flaviotartuce.adv.br. Acesso em 21 jun. 2017).
Entretanto, como se sabe, o Superior Tribunal de
Justiça reformou a primeva decisão do Tribunal de Minas Gerais, afastando o
dever de indenizar no caso em questão, diante da ausência de ato ilícito, pois
o pai não seria obrigado a amar o filho. Em suma, o abandono afetivo seria
situação incapaz de gerar reparação pecuniária (STJ, Recurso Especial
757.411/MG, Relator Ministro Fernando Gonçalves; votou vencido o ministro
Barros Monteiro, que não conhecia do recurso. Os Ministros Aldir Passarinho
Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator.
Data do julgamento: 29 de novembro de 2005).
De qualquer modo, tal decisão
do Tribunal da Cidadania não encerrou o debate quanto à indenização por abandono
afetivo, que permanece intenso na doutrina. Cumpre destacar que me
posiciono no sentido de existir o dever de indenizar em casos tais,
especialmente se houver um dano psíquico ensejador de dano moral, a ser
demonstrado por prova psicanalítica. O desrespeito ao dever de convivência é
muito claro, eis que o art. 1.634 do Código
Civil impõe como atributos do poder familiar a
direção da criação dos filhos e o dever de ter os filhos em sua companhia. Além
disso, o art. 229 da Constituição Federalé cristalino ao estabelecer que os pais têm o dever de assistir, criar e
educar os filhos menores. Violado esse dever e sendo causado o dano ao filho,
estará configurado o ato ilícito, nos exatos termos do que estabelece o
art. 186 do Código
Civil em vigor.
Quanto ao argumento de
eventual monetarização do afeto, penso que a Constituição Federal encerrou definitivamente tal debate, ao reconhecer expressamente a
reparação dos danos morais em seu art. 5º, incs. V e X. Aliás, se
tal argumento for levado ao extremo, a reparação por danos extrapatrimoniais
não seria cabível em casos como de morte de pessoa da família, por exemplo.
A propósito, demonstrando evolução quanto ao tema,
surgiu, no ano de 2012, outra decisão do Superior Tribunal de Justiça em
revisão à ementa anterior, ou seja, admitindo a reparação civil pelo abandono
afetivo. A ementa foi assim publicada por esse Tribunal Superior:
"Civil e Processual Civil.
Família. Abandono afetivo. Compensação por dano moral. Possibilidade. 1.
Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à
responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito
de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no
ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e
termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/1988. 3.
Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em
se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso
porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o
necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado –, importa em
vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear
compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras
hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em
relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para
além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à
afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção
social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes
ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática –
não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A
alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível,
em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de
origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso “especial parcialmente
provido” (STJ, REsp 1.159.242/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j.
24/04/2012, DJe 10/05/2012).
Em sua relatoria, a julgadora ressalta, de início, ser admissível
aplicar o conceito de dano moral nas relações familiares, sendo despiciendo
qualquer tipo de discussão a esse respeito, pelos naturais diálogos entre
livros diferentes do Código
Civil de 2002. Desse modo, supera-se
totalmente a posição firmada no primeiro julgado superior sobre o tema,
especialmente o que foi desenvolvido pelo então Ministro Asfor Rocha, da
impossibilidade de interação entre o Direito de Família e a Responsabilidade
Civil.
Para a Ministra Nancy Andrighi,
ainda, o dano extrapatrimonial estaria presente diante de uma obrigação
inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia
do cuidado como valor jurídico, com fundamento no princípio da
afetividade, a julgadora deduz pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo
abandono afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e
jurídicos: "amar é faculdade, cuidar é dever". Concluindo pelo nexo
causal entre a conduta do pai que não reconheceu voluntariamente a paternidade
de filha havida fora do casamento e o dano a ela causado pelo abandono, a
magistrada entendeu por reduzir o quantum reparatório que foi
fixado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de R$ 415.000,00 (quatrocentos e
quinze mil reais) para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais).
Penso que esse último acórdão proferido pelo
Superior Tribunal de Justiça representa correta concretização jurídica do
princípio da solidariedade; sem perder de vista a função pedagógica ou de
desestímulo que deve ter a responsabilidade civil. Sempre pontuei, assim, que
esse último posicionamento deve prevalecer na nossa jurisprudência, visando
também a evitar que outros pais abandonem os seus filhos.
De todo modo, fazendo uma pesquisa mais atual,
posterior ao último aresto superior, notei que há ainda grande vacilação
jurisprudencial na admissão da reparação civil por abandono afetivo, com ampla
prevalência de julgados que concluem pela inexistência de ato ilícito em casos
tais, notadamente pela ausência de prova do dano.
Trilhando esse caminho, de
acordo com a primeira orientação do Tribunal da Cidadania, na Corte Estadual
que despertou o debate, deduziu-se que "por não haver nenhuma
possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do CC, que pressupõe prática de ato ilícito, não há como reconhecer o
abandono afetivo como dano passível de reparação" (TJMG, Apelação Cível n.
1.0647.15.013215-5/001, Rel. Des. Saldanha da Fonseca, julgado em
10/05/2017, DJEMG15/05/2017).
Na mesma linha, sem prejuízo de
muitas outras ementas de negação do ilícito: "a pretensão de indenização
pelos danos sofridos em razão da ausência do pai não procede, haja vista que
para a configuração do dano moral faz-se necessário prática de ato ilícito.
Beligerância entre os genitores" (TJRS, Apelação Cível n.
0048476-69.2017.8.21.7000, Teutônia, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luís
Dall’Agnol, julgado em 26/04/2017, DJERS04/05/2017). De todo modo,
pode ser notada certa confusão técnica no último decisum, pois não
é o ilícito que é elemento do dano moral, mas vice-versa.
Por outra via, concluindo pela
ausência de prova do dano, entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo que
"a jurisprudência pátria vem admitindo a possibilidade de dano afetivo
suscetível de ser indenizado, desde que bem caracterizada violação aos deveres
extrapatrimoniais integrantes do poder familiar, configurando traumas
expressivos ou sofrimento intenso ao ofendido. Inocorrência na espécie.
Depoimentos pessoais e testemunhais altamente controvertidos. Necessidade de
prova da efetiva conduta omissiva do pai em relação à filha, do abalo
psicológico e do nexo de causalidade. Alegação genérica não amparada em
elementos de prova. Non liquet, nos termos do artigo 373, I, do Código
de Processo Civil, a impor a improcedência do
pedido" (TJSP, Apelação n. 0006195-03.2014.8.26.0360, Acórdão n. 9689092,
Mococa, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. J. B. Paula Lima, julgado
em 09/08/2016, DJESP 02/09/2016).
Em complemento, e mais
recentemente, o Tribunal gaúcho aduziu que "o dano moral exige extrema
cautela no âmbito do direito de família, pois deve decorrer da prática de um
ato ilícito, que é considerado como aquela conduta que viola o direito de
alguém e causa a este um dano, que pode ser material ou exclusivamente moral.
Para haver obrigação de indenizar, exige-se a violação de um direito da parte,
com a comprovação dos danos sofridos e do nexo de causalidade entre a conduta
desenvolvida e o dano sofrido, e o mero distanciamento afetivo entre pais e
filhos não constitui, por si só, situação capaz de gerar dano moral"
(TJRS, Apelação Cível n. 0087881-15.2017.8.21.7000, Porto Alegre, Sétima Câmara
Cível, Relª Desª Liselena Schifino Robles Ribeiro, julgado em 31/05/2017, DJERS 06/06/2017).
Na pesquisa que realizei, em junho de 2017, constatei que muitos julgamentos
seguem a última frase da ementa, segundo a qual o mero distanciamento físico
entre pai e filho não configura, por si só, o ilícito indenizam-te.
Diante desse panorama recente, recomendo que os
pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com
a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho.
Notei que os julgados estão orientados pela afirmação de que não basta a prova
da simples ausência de convivência para que caiba a indenização.
Acrescente-se que no próprio
Superior Tribunal de Justiça existem acórdãos recentes que não admitem a
reparação de danos por abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade.
Desse modo, julgando "alegada ocorrência de abandono afetivo antes do
reconhecimento da paternidade. Não caracterização de ilícito. Precedentes"
(STJ, AREsp 1.071.160/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJE 19/06/2017).
Ou, ainda, "a Terceira Turma já proclamou que antes do reconhecimento da
paternidade, não há se falar em responsabilidade por abandono afetivo"
(STJ, Agravo Regimental no AREsp n. 766.159/MS, Terceira Turma, Rel. Min. Moura
Ribeiro, DJE09/06/2016).
Em suma, parece que a doutrina
contemporânea foi bem festiva em relação à admissão da
reparação imaterial por abandono afetivo, em especial após o julgamento do REsp
1.159.242/SP, em 2012. Porém, no âmbito da jurisprudência, há certo ceticismo,
com numerosos julgados que afastam a indenização. Muitos deles o fazem também
com base na existência de prescrição da pretensão, tema a ser tratado no
futuro, neste mesmo canal.
Fonte: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/482143063/da-indenizacao-por-abandono-afetivo-na-mais-recente-jurisprudencia-brasileira?utm_campaign=newsletter-daily_20170728_5697&utm_medium=email&utm_source=newsletter
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